sexta-feira, 30 de abril de 2010

Um pequeno leitor de Caxias - ele está cursando a 6ª série - resolveu ingressar desde cedo no grupo dos que não se contentam com explicações simplistas sobre nosso idioma: "O autor S... diz que o nome do continente onde fica o Pólo Sul é Antártida, e que Antártica é marca de cerveja, mas não entendo por quê. Não seria mais lógico ter o Ártico num pólo e a Antártica no outro - os dois com a letra C?".

Pois, meu jovem caxiense, sou obrigado a concordar contigo em gênero, número e caso, pelos motivos que vou apresentar.

O nome Ártico (outrora Árctico) vem do Grego arktos, "urso", não por causa do urso polar, mas sim por causa da Grande Ursa, a constelação do Norte, assim denominada pelos astrônomos antigos por causa do mito grego da ninfa Calisto: seduzida por Zeus, o rei dos deuses, a pobre ninfa foi punida por Artêmis, a deusa da caça, que a transformou numa ursa; anos mais tarde, numa caçada, o filho de Calisto, que desconhecia o destino da mãe, preparava-se para abater o animal, quando Zeus, inconformado com a injustiça, transformou os dois nas constelações das Ursas, sempre visíveis no Hemisfério Norte, em direção ao Pólo.

Nada mais natural, portanto, que o continente gelado do Sul, a Antártica, fosse convenientemente batizada como "oposta ao Ártico" (anti+arkticos). Nos mapas-múndi do século dos Descobrimentos, figurava um "continente Austral", que se estenderia da Austrália (que só era conhecida em parte) até a Terra do Fogo, sem interrupção. Muitos navegadores dos séculos 16 e 17 chegaram bem perto, ao passar do Pacífico ao Atlântico, mas, ao que parece, o primeiro a atravessar o Círculo Antártico foi James Cook, na sua viagem de 1772-1775, comandando o Resolution e o Adventure (nomes perfeitos para um navio se tornar lendário...) .

A variante Antártida (com D), usada principalmente pelos países de língua espanhola (a Argentina, o Chile, a própria Espanha) pode ter vindo da associação equivocada com o continente perdido da Atlântida. Parece uma boa hipótese. Primeiro, porque, desconsiderando a etimologia do nome (que está, como vimos, associado ao Ártico), pode-se construir uma simples proporcional, em que o adjetivo atlântico está para o substantivo Atlântida assim como o adjetivo antártico estaria para Antártida. Depois, porque ambas, Atlântida e Antártica, designaram no imaginário do Ocidente, por centenas de anos, terras misteriosas, ignotas, onde tudo poderia acontecer. Antes que os noruegueses de Amundsen e os ingleses de Scott, na virada deste século, desbravassem o Continente Branco, a literatura se aproveitou deste último rincão desconhecido de nosso planeta para imaginar paisagens fantásticas. Basta lembrar ao leitor o mundo tropical, misterioso e aterrorizante, que Poe situa nas imediações do Pólo Sul em seu inigualável As aventuras de Arthur Gordon Pym, que mereceu a continuação de pelo menos dois famosos escritores, Júlio Verne (A esfinge dos gelos) e H. P. Lovecraft (As montanhas da loucura).

O Francês ora usa Antarctique, ora Antarctide. No Brasil, a hesitação vai pouco a pouco se resolvendo em favor da forma internacional Antártica. Embora nossa legislação vacile entre as duas possibilidades (nossos decretos se referem tanto ao Tratado da Antártida, quanto ao da Antártica), esta última é a forma utilizada na maioria das universidades e nos órgãos governamentais que mantêm institutos de pesquisa sobre essa região; no Houaiss, dois verbetes trazem Antártida, enquanto oito preferem Antártica (ver "gondwana" e "grou", por exemplo). Quem alega que Antártica é o nome da cerveja e não do continente está tomando o efeito pela causa: a cerveja é que foi batizada de Antárctica (assim mesmo, com o C antes do T) em homenagem às terras geladas do Sul - com direito aos dois pingüins no rótulo. Só não sei se aqui Antártica é substantivo ou adjetivo - comparando: se é cerveja Brasil ou cerveja Brasileira, ou, num exemplo ainda mais adequado, se é cerveja Ártico ou cerveja Ártica. Isso se resolve com uma pesquisa na história da Cervejaria Antárctica, que tem, aliás, como concorrente mais antigo, a Cervejaria Brahma, cujo nome vem do famoso deus Brahma (que estava presente nos rótulos primitivos); sua adoração (do deus, não da bebida) é conhecida por "bramanismo". Mas isso já é outra história.


[Zero Hora, Edição nº 14530 - Porto Alegre, 04 de junho de 2005]


E-Mail: claudio.moreno@zerohora.com.br

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