sexta-feira, 30 de abril de 2010

Vivemos mergulhados num mar de palavras e nos acostumamos, desde pequeninos, a olhar através delas para enxergar o mundo dos significados, da mesma forma que olhamos através da janela para enxergar a paisagem.

Se, no entanto, fixarmos o olhar na própria vidraça - isto é, se examinarmos os sons, as letras ou os elementos que constituem uma palavra, em vez de procurar o seu sentido, vamos ingressar num campo de puro divertimento. Se você gosta das palavras, como eu, experimente recombinar morfemas, permutar letras, trocar sílabas de lugar, e vai ficar surpreso com as coincidências que vai descobrir. Você, meu caro leitor, certamente já tinha notado que a palavra anilina provém de anil (azul), embora hoje exista em várias cores; mas terá percebido, também, que ela é um palíndromo, isto é, que pode ser lida de trás para frente, com o mesmo resultado?

Este lado lúdico da linguagem está bem vivo para as crianças; elas decidem quem vai começar a brincadeira por meio de jogos de escolha rimados, desprovidos de sentido, como "uni-duni-tê, salamê mingüê", ou "una, duna, tena, catena", e se encantam com os trava-línguas, com o jogo da forca, com a língua do P, com os trocadilhos e as adivinhas. Já os mais taludos, como eu, enfrentam as palavras cruzadas, as charadas, os palíndromos ou os acrósticos, entre dezenas de proezas e acrobacias verbais que o homem inventou para se divertir. Mostro, abaixo, algumas interessantes variações:

Palavra-valise - (ou palavra portmanteau) é formada pela união de pedaços de duas outras palavras. Geralmente se usa o início de uma e o final da outra. Trouxemos bit (binary digit) e motel (motor hotel) do Inglês; aqui, formamos portunhol (português + espanhol), televizinho (televisão + vizinho), estagflação (estagnação + inflação), aborrescente (adolescente + aborrecido).

Millôr Fernandes iniciou a moda de montar palavras-valise imaginárias (cartomente - uma adivinha que nunca diz a verdade) ou interpretar palavras comuns como se tivessem essa dupla construção: cerveja - sonho de toda revista; melancólica - dor de barriga provocada por excesso de melão.

Spoonerismo - É um trocadilho em que ocorre uma troca de sons entre duas palavras, como transformar bola de gude em gula de bode. Seu nome vem de W. A. Spooner, um desastrado pregador britânico que ficou famoso por esses lapsos involuntários. Millôr tem uma hilariante versão da fábula do bode e da raposa, intitulada "A baposa e o rode", totalmente escrita em spoonerismos.

Anagrama - Consiste em uma palavra obtida pela recombinação das letras de outra; é indispensável que a nova palavra utilize exatamente as mesmas letras. Um bom anagrama deve ter o seu significado relacionado de alguma forma com a palavra original, algumas vezes com efeito satírico ofensivo. Os nomes Alice e Belisa , por exemplo, nasceram da recombinação das letras de Célia e Isabel, respectivamente. É clara a intenção simbólica de José de Alencar, ao batizar de Iracema - anagrama de América - a heroína de seu romance indianista, assim como é puro jogo de maledicência apontar que Axl Rose é o anagrama de oral sex e argentino é o anagrama de ignorante.

Lipograma - Do grego lipo ("retirar") e grama ("letra"). Eis uma boa definição lipogramática, sem usar o E: "Isto constitui um lipograma: uma oração, um parágrafo, um capítulo, um livro todinho composto faltando um dos nossos símbolos gráficos; no caso atual, omiti a vogal situada após o D". O lipograma já era cultivado entre os gregos; no século 17, o espanhol Alonso de Alcalá escreveu cinco novelas de amor que omitiam, sucessivamente, as cinco vogais no espanhol. O endiabrado George Perec (1938 - 1982), membro do Ou.Li.Po. (grupo dedicado a jogos verbais e literários), escreveu o romance La disparition ("O desaparecimento") omitindo a vogal E, a mais usada no Francês.

Pangrama - Texto que utiliza todas as letras do alfabeto (do grego pan, "todas", e grama, "letras"). Um bom pangrama deve usar o menor número possível de letras e não ser desprovido de sentido. Quem sempre se interessou por este tipo de jogo foram os tipógrafos e os professores de datilografia, preocupados em acostumar os alunos com a totalidade do teclado. No inglês, a frase The quick brown fox jumps over the lazy dog ("A lépida raposa marrom pula por cima do cachorro preguiçoso") tem oito falhas (oito letras repetidas), mas o seu simpático significado fez dela o exemplo mais conhecido de pangrama. No Português, não se incluirão o W, o Y e o K, que não pertencem a nosso alfabeto oficial.


[Porto Alegre, 19 de novembro de 2005 - Zero Hora, Edição nº 14699]

E-Mail: claudio.moreno@zerohora.com.br

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